Eduardo Ritter

Um livro ou um vídeo de cachorro?

Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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O quê você prefere: ler um livro ou assistir a um vídeo de um cachorro no TikTok ou no Instagram? Pensei nisso agora há pouco, ao ver um vídeo fofo de três cachorros e pensar: "eu posso ficar o dia inteiro assistindo a vídeos de cachorros, mas ainda faltam 20 páginas para terminar de ler Uma sensação estranha, do escritor turco Orhan Pamuk". Assistir vídeos é mais fácil e eles ainda conseguem me despertar em poucos segundos o que um livro longo, como o de Pamuk, desperta-me em dias, semanas ou meses: expectativa, indignação, curiosidade, prazer em desvendar o incerto, risos e assim por diante. E aí, vendo a Bolinha e o Bruce, dois cachorros que dividem a residência comigo e minha filha, fico me perguntando: por que estou escrevendo um livro ao invés de filmar esses dois caninos fazendo as suas peripécias?

Sentado na área da casa, sentindo o vento quente de 26ºC que faz às 2h05min da madrugada, tomando uma cerveja gelada que já está esquentando, respondo para mim mesmo: porque há público para os dois tipos de produção e uma não elimina a outra. É assim que é e sempre foi. Enquanto hoje, em 2023, há milhões de pessoas que passam praticamente o dia inteiro vendo vídeos curtos de cachorros, gatos, periquitos, gansos, ratos, toupeiras, bolsonaros, porcos e todos os animais possíveis, ainda tem gente que gosta de ler livros, romances, grandes reportagens e afins. A questão é que o leitor de literatura, seja ela ficcional ou não, existe desde que ela foi criada e sempre existirá, bem como o sujeito que não gosta de ler e que vai buscar outro entretenimento em qualquer outro lugar: nos programas populares de rádio a partir dos anos 1930, nas telenovelas e programas de auditório da televisão a partir dos anos 1950 ou nos vídeos curtos do TikTok e outros aplicativos na contemporaneidade.

O fato é que o ser humano sempre buscou enredos que lhe chamem a atenção e que contenham elementos universais, como felicidade, excitação, tristeza, surpresa, empatia pelo próximo, tragédia, expectativa pelo que vai acontecer, comédia, alívio e assim por diante. No caso do vídeo que assisti há pouco havia vários destes elementos: dois cachorros estão de frente para uma porta de vidro, assistindo ao que se passava lá fora. Um terceiro chega vagarosamente, passo após passo, atrás dos outros dois. De repente ele para e late. Os outros dois pulam e se viram e todos começam a brincar, abanando o rabo. É uma narrativa interessante com bichos fofos e peludos que acontece em poucos segundos e despertam diversos sentimentos no bicho homem que está abestalhado assistindo à cena com um celular na mão. Eu curti o vídeo. Mas também curto experimentar diversos desses mesmos sentimentos lentamente, lendo a história de personagens, imaginando como eles são, o tempo e o lugar onde vivem, ao longo de dias de leitura, desvendando a cada passo lentamente. Enquanto na primeira situação há uma espécie de ejaculação precoce, na segunda há um orgasmo que dura horas, dias, semanas ou meses, ou seja, a apoteose do prazer, tanto masculino quanto feminino.

No universo em que vivemos, há espaço para tudo e para todos: tanto para o gozo rápido e curto do TikTok quanto para o orgasmo tântrico e prolongado da literatura. O que eu prefiro? Sinceramente, sou mais da literatura, pois gosto de curtir lentamente cada uma das milhões de sensações que essas narrativas conseguem produzir tanto no nosso cérebro quanto nos nossos corações.

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